O escritor Oscar Wilde dizia que somente os tolos não se deixavam guiar pela primeira impressão. Referia-se a pessoas, porém, como observaram Carlos Graieb e João Gabriel de Lima, em um artigo para revista Veja, em março de 1999, Wilde poderia estar se referindo a livros.
A frase inicial de um livro é seu cartão de visita: um convite à segunda página, à terceira, ao volume completo. Assim acontece com "O Estrangeiro", de Albert Camus:
"Hoje, mamãe morreu". E o leitor, curioso: "De quê? Como? Por quê? E o que será desse filho que acabara de perder a mãe?"
"Se ele não chorar ao enterrá-la, correrá o risco de ser condenado à morte", respondeu Camus, sobre o Sr. Mersault, o órfão da frase inicial.
E, do cartão de visita à última página, da morte materna à sua condenação, Camus convida o leitor a conhecer toda a conduta de Mersault, durante esse percurso. Mas, não de forma subjetiva. Apesar de narrado em primeira pessoa, o que possibilitaria descrições do mundo interior, em "O Estrangeiro", tudo é apresentado de forma objetiva, é o seu modo de fazer e não de ser. É através de seus atos e gestos, descritos pelo próprio Mersault, que o leitor se transforma em uma testemunha que tudo viu: o funeral da Sra. Mersault, os banhos de mar com Marie, a briga entre Raymond e o árabe, a luz que brilhou no aço da faca empunhada pelo seu opositor, a cegueira proporcionada pelo suor a escorrer pelos olhos, a tragédia solar de cinco balas cravadas em um corpo inerte. Tudo viu, mas não será convocado a depor.
Porém, tudo o que viu, foi através dos olhos de Mersault. O seu testemunho é igual ao do réu. Testemunho este, que o condenou, por não seguir as regras da sociedade, ao se recusar a mentir e, entenda-se por mentir, como sendo não-dizer sentir o que não sente, assim como, não-dizer sentir mais do que realmente sente.
Ao ser interrogado pelo advogado sobre os sentimentos no dia da morte de sua mãe, Mersault respondeu que perdera um pouco o hábito de interrogar a si mesmo, que amava sua mãe, mas observou que "todos os seres normais, tinham, em certas ocasiões, desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam". Explicara ao advogado que esse era seu temperamento, que os impulsos físicos perturbavam seus sentimentos e que, naquele dia, sentia-se cansado e com sono e, por esses motivos, não podia dar conta do que se passava. Afirmou, porém, que tinha certeza de que preferia que sua mãe não tivesse morrido. Mas, como disse o advogado, isso não bastava. Era necessário dizer sentir mais do que sentia, era necessário dizer que sentia o que não sentia.
O absurdo, apresentado através de Mersault, que fora condenado à morte não pelo assassinato do árabe, mas por não chorar no enterro de sua mãe, é, para Camus, um exemplo do confronto entre a condição humana e a irracionalidade do mundo; como conseqüência, rompem-se as relações homem-mundo e homem-homem, tornando assim o homem um estrangeiro para o mundo e para si mesmo.
O "estrangeiro", descrito acima, é personificado em Mersault, como comentou Claude-Edmonde Magny, em "A Idade de Ouro do Romance Americano", de 1949. Mersault não conhecia a origem de seus sentimentos, procurava-os, porém não os encontrava, esbarrando somente na visão de seus atos, seu comportamento. Visão esta, que é semelhante àquela que os outros podem ter dele. Como descreveu Magny: "ele parece 'estrangeiro' a si mesmo: ele se vê como vêem os outros, do mesmo ponto de vista".
Durante o julgamento, o promotor acusava Mersault de não sentir remorso pela morte do árabe. Ele, por sua vez, enxergava a si mesmo naquelas palavras, "Não posso deixar de reconhecer, sem dúvida, que ele tinha razão. Não me arrependia muito do meu ato". Em seguida, o advogado de defesa, em seu discurso, afirmava: "é verdade que matei". E, Mersault via-se admitindo culpa, através da boca de outra pessoa. "Mas, a mim parecia-me que me afastavam ainda mais do caso, reduziam-me a zero e, de certa forma, substituíam-me".
Quando o promotor começou a falar de sua alma, ele tentou prestar atenção. Quando o advogado falou de sua alma, ele achou que o mesmo tinha menos talento que o promotor. É como se, não conhecendo sua alma, fosse necessário ouvir alguém falar dela, para (re)conhecê-la.
A morte transforma-se em peça reveladora desse absurdo, e, ao conscientizar-se do absurdo, o homem percebe-se acorrentado a hábitos e regras sociais, livre, somente na ilusão. A descoberta desse absurdo, que fazia de Mersault um "estrangeiro" a tudo, não é um fim e, sim, um começo, uma vez que a diferença se dará no uso dessa constatação.
A descoberta de sua real condição libera-o de regras sociais comuns, ensinando-o a "viver somente com aquilo que sabe". Como em "O Mito de Sísifo", Camus descreve seu herói como o que "sabe-se mestre de seu destino". Consciente de seus esforços inúteis, sem esperanças, Sísifo não permite que isso o aniquile, assumindo que este é seu destino, o trabalho de empurrar a pedra para o alto da montanha, para que ela torne a cair e ele comece a caminhada, novamente. Essa luta para o alto da montanha preenche sua vida.
Na prisão, Mersault preencheu sua vida, com a mesma repetição do trabalho de Sísifo: a partir do momento em que se tornou ciente de sua condição de prisioneiro, depois de alguns meses de pensamentos de homem livre (que desejava estar em uma praia, por exemplo), passou a ter pensamentos de prisioneiro (aguardando a visita do advogado ou o passeio diário no pátio). Quando o guarda disse a Mersault que ele estava há cinco meses na prisão, ele acreditou mas não compreendeu, pois "era sempre o mesmo dia que se desenrolava na minha cela, e era sempre a mesma tarefa, que eu perseguia sem cessar". A pedra empurrada até o alto da montanha, a pedra a cair do alto da montanha, a pedra empurrada até o alto da montanha, a pedra a cair do alto da montanha, a pedra...
No seu rolar de pedras, dentro da prisão, após o julgamento, em uma visita o sacerdote perguntou a Mersault se ele já desejara ter outra vida. Ele respondeu, que sim, "uma vida na qual me pudesse lembrar desta vida", pois desta forma, ele tornar-se-ia conhecedor de seu destino e, portanto, uma vez ciente da única certeza possível, a de que a morte coloca um fim à vida, tanto fazia ser hoje ou daqui há vinte anos, era sempre ele quem morreria. Para espanto do sacerdote, que não entendia como alguém conseguia viver com a idéia de que irá morrer todo, por inteiro, sem nenhuma esperança de vida futura (após a morte). Assim sendo, não perderia tempo com arrependimentos ou amarguras do passado - o que fez, ou escolheu, está feito e escolhido - e não sofreria de ansiedade do futuro - pois tanto fazia morrer aos 10 anos ou aos 100 anos, sempre outras pessoas, homens, velhos, mulheres e crianças viverão, como tem acontecido há milhares de anos.
Mersault vivia e aceitava o presente e a sucessão de presentes, ciente que o presente seguinte era uma conseqüência de sua escolha dentro do contexto de seu presente atual.
Ao decidir viver o presente e as sucessões de presentes, Mersault não se arrependeu de ter assassinado o árabe e de não ter chorado no enterro de sua mãe, se contrário fosse, seus pensamentos seriam "e se eu não tivesse feito isso ou aquilo". Seu comportamento no início do julgamento era de interesse em assistir a um julgamento, pois, "nunca tivera essa oportunidade em toda a minha vida", descreveu. Após o julgamento, ao voltar a atenção para a busca através da memória, de informações sobre condenados que tivessem escapado, ocorria com base no fato que acabara de acontecer, uma possibilidade real sobre o fato ocorrido: fora condenado culpado e a sentença de morte pronunciada como decisão. Seus pensamentos não se voltaram para a busca divina de milagres, ou salvação através da religião.
Ciente de suas escolhas, aos berros disse ao sacerdote: "Tinha tido razão, ainda tinha razão, teria sempre razão. Vivera de uma certa maneira e poderia ter vivido de outra. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera determinada coisa, ao passo fizera esta outra. E depois? Era como se durante todo o tempo tivesse esperado por este minuto e por essa madrugada em que seria justificado."
Diante desse mundo esvaziado de sentido, Camus apresenta as possibilidades para esse "homem absurdo": "ser ator, porque este sabe que não há fronteira entre o que um homem deseja e aquilo que ele é; ser Dom Juan, porque este se recusa a arrepender-se e a lamentar-se; ser aventureiro, porque prefere ir à ação, sem nostalgias, nem amargura".
E na noite em que soaram as sirenes, Mersault, tão perto da morte sentiu-se livre, pois vivia somente com aquilo que sabia: iria morrer. Sem arrependimentos ou lamentações. Transforma em regra de vida o que seria um convite à morte. Não havia mais a fronteira, não era necessário desejar uma ilusão de eternidade, ter esperanças para ser feliz. Mersault tinha certeza: fora feliz e ainda o era. Estava pronto para a ação: desejou que houvesse muitos espectadores no dia da sua execução.
"Hoje, Mersault morreu", em negrito, estampado na primeira página do jornal local.
E o leitor, curioso: "De quê? Como? Por quê?"
BINDA, Angela. A indiferença e o sol: Meursault o herói absurdo em O Estrangeiro de Albert Camus. EDUFES - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo, 2013.
ARAÚJO, Pedro Gabriel de Pinho. O papel do escritor em Albert Camus. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Departamento de Filosofia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, como exigência parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Filosofia, área de concentração em Filosofia e Literatura, 2013.
JOSÉ, Caio Jesus Granduque. O ABSURDO DOS DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES A PARTIR DE ALBERT CAMUS. O Direito Alternativo, v. 1, n. 1, p. 7-33, agosto 2011.
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