No dicionário Houaiss, o verbo rememorar significa:
1. trazer à memória, relembrar.
2. dar idéia de; lembrar.
O verbo comemorar:
1. trazer à lembrança; recordar, memorar.
2. fazer comemoração, realizar cerimônia de evocação de (um fato, um acontecimento, uma pessoa etc.).
3. celebrar com festa; festejar.
O prefixo “co” está associado aqui, a conjunto, grupo, ou seja, ao coletivo. O filósofo francês Paul Ricoeur [1] estabelece uma distinção entre “rememorar”, como processo individual e “comemorar”, como construção de uma memória coletiva.
As comemorações são eventos que proporcionam atualizações das identidades e das memórias, pois, possibilitam reaver a lembrança de uma pessoa ou um acontecimento, permitindo a conexão entre indivíduos, com base na memória. Tal possibilidade ocupa um papel importante no meio político atual, pois, serve de ferramenta para legitimar e/ou atualizar identidades, uma vez que essas não são permanentes, e sim, construídas historicamente, com referência aos outros, sendo assim, sujeitas a negociações e transformações.
Um exemplo da utilização dessa ferramenta e da mutação da identidade são os eventos comemorativos relacionados à figura de Getúlio Vargas [2]:
1964: no aniversário de dez anos da morte do ex-presidente, não era admissível ignorar a importância de sua figura para a história nacional, por outro lado, não era conveniente valorizar sua herança, uma vez que seus “herdeiros” – Jango e J.K. – eram alvos das perseguições do regime vigente.
1974: o governo militar destacava o desenvolvimento econômico durante o mandato do cidadão de São Borja; a população cultuava a “carta-testamento” como “carta-promessa” de um país melhor e a oposição, destacava a figura do ditador, como crítica indireta ao momento político.
1984: a figura de ditador passa a coadjuvante, cedendo o espaço de protagonista para a “carta-testamento” e para seus “herdeiros”, Tancredo Neves e Leonel Brizola (aliança PDT e PMDB para as eleições indiretas).
1994: no contexto das privatizações das empresas estatais, questiona-se o fim da “Era Vargas”, ou seja, de seu modelo de desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que sua “carta-testamento” é acionada como contestação à venda das empresas.
2004: o foco dos noticiários voltou-se para o segundo governo (1951 – 1954) e suas políticas econômicas e trabalhistas.
Essa última comemoração (2004), diferentemente da década anterior, graças a atuação da mídia, resultou em um “verdadeiro boom de memória sobre Vargas”[3], distribuídos em artigos jornalísticos, cadernos especiais em periódicos de grande circulação, exposições, seminários, entre outros. Segundo Andreas Huyssen, as categorias tempo e espaço, fundamentais para a percepção humana, para a compreensão com o que ocorre ao seu redor, estão sempre sujeitas a mudanças históricas e uma “das lamentações permanentes da modernidade se refere à perda de uma passado melhor, da memória de viver em um lugar seguramente circunscrito”[4]. Tal observação encontra sentido no foco das celebrações do ano de 2004, pois, o segundo governo Vargas:
“Foi uma época de crescimento econômico, de implantação de políticas industriais que estimularam a ampliação do mercado de trabalho, o que possibilitou maior inclusão social, tudo isso dentro da vigência de normas democráticas. Nos dias de hoje, é compreensível que esse cenário provoque nostalgia naqueles que voltam o olhar para a década de 1950. Integrar o pleno funcionamento da democracia com a retomada do crescimento econômico e a diminuição das desigualdades sociais é o grande desafio colocado na atualidade.”
[FERREIRA, Marieta de Moraes. “Getúlio Vargas: uma memória em disputa”. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2006 p.2.]
Para as futuras comemorações no ano de 2014, quais serão as atualizações? Em pleno ano de eleição presidencial, a figura de Getúlio Vargas ressurgirá como cabo eleitoral? Novos herdeiros reclamarão seus direitos na “carta-testamento”? Será Vargas substituído por um outro personagem? Ganhará um novo memorial? Sejam quais forem as apropriações, os estudos das comemorações permitem observar a construção da memória e essa por sua vez, pode fornecer uma conexão importante para a compreensão do passado.
[1] SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração/comemoração: as utilizações sociais da memória”. IN: Revista Brasileira de História. São Paulo, V.22, N.44, p. 428.
[2] FERREIRA, Marieta de Moraes. “Getúlio Vargas: uma memória em disputa”. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2006.
[3] Ibid., p.11.
[4] HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídias. Rio de Janeiro: Aeroplano, 200, p.30.