A memória não é um fenômeno de introjeção individual, e sim, uma construção social e um fenômeno coletivo, moldada pelos próprios grupos sociais. A ela articula-se a produção de subjetividade, esta, elemento importante na constituição do mundo moderno, em outras palavras, da nossa sociedade, “o que permite supor que a história de vida das pessoas, que narram suas lembranças, passa a ter lugar de destaque no meio social”[1].
Duas linhas envolvem atualmente o campo da história oral – não excludentes, porém distintas – [2]. Uma delas volta-se para o estudo das representações, da relação entre memória e história, na qual “a subjetividade e as deformações do depoimento oral não são vistas como elementos negativos” [3], uma vez que a veracidade dos relatos não é a preocupação central, tornando-se, muitas vezes, recursos adicionais para ampliação da pesquisa: “se ouvimos e mantivermos flexível nossa pauta de trabalho, a fim de incluir não só aquilo que acreditamos querer ouvir, mas também o que a outra pessoa considera importante dizer, nossas descobertas sempre vão superar nossas expectativas”[4]. Para Alessandro Portelli, essa subjetividade “desqüalificante”, é desejada:
“enquanto as outras ciências sociais desempenham a indispensável tarefa de abstrair, da experiência e memória individuais, padrões e modelos de memória que transcendem à pessoa, a História Oral alia o esforço de reconstruir padrões e modelos à atenção às variações e transgressões individuais concretas. Assim, a História Oral tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços são diferentes, porém, formam um todo coerente depois de reunidos – a menos que as diferenças entre elas sejam tão irreconciliáveis que talvez cheguem a rasgar todo o tecido. Em última análise, essa também é uma representação muito mais realista da sociedade, conforme a experimentamos”[5]
A outra linha utiliza os depoimentos orais como ferramentas para o preenchimento das lacunas, para a recuperação do percurso, “criação de novas histórias (...), contribuir para o processo de dar voz a experiências vividas por indivíduos e grupos que foram excluídos das narrativas históricas anteriores”[6], por exemplo, “cujas fontes são especialmente precárias”[7], depoimentos estes que podem servir tanto para objetivos acadêmicos, como “instrumentos de construção de identidade e de transformação social”[8]. A preocupação central é a produção de depoimentos que garantam o máximo de veracidade e de objetividade possíveis, que resultarão da elaboração de roteiros consistentes e do uso de fontes adicionais que possam reunir elementos que sirvam como contraprova e auxiliem da exclusão de possíveis distorções. Sobre essa busca de aproximação da veracidade, Portelli descreve:
“compromisso com a verdade, uma busca utópica e a vontade de saber ‘como as coisas realmente são’, equilibradas por uma atitude aberta às muitas variáveis de ‘como as coisas podem ser’. Por um lado, o reconhecimento da existência de múltiplas narrativas nos protege da crença farisaica e totalitária de que a ‘ciência’ nos transforma em depositários de verdades púnicas e incontestáveis. Por outro lado, a utópica busca da verdade protege-nos da premissa irresponsável de que todas as histórias são equivalentes intercambiáveis e, em última análise, irrelevantes.”[9]
Ainda sobre o conceito de memória, trata-se não do passado, “mas a rememoração desse passado feita no presente de um indivíduo, sendo determinadas pelas condições presentes do momento”[10]: O filme etnográfico realizado por Edgar Morin, chamado “Retour à Plozévet”, foi revisto em 1999, quando o diretor Ariel Nathan decidiu refazer o trajeto de Morin, na costa da Bretanha, entrevistando, dentro das possibilidades, as mesmas pessoas que participaram no registro anterior. Até então, o documentário da década de 1960 era “considerado uma dos melhores retratos e uma das melhores documentações de um modo de vida em vias de desaparecer”[11]. Um dos pontos centrais do registro eram os penteados complexos e as roupas ornamentadas usados pela população feminina no local, em várias situações cotidianas, da preparação do café da manhã, durante o trabalho na fábrica artesanal, nas missas dominicais. Nas entrevistas realizadas por Nathan, trinta anos depois, descobriu-se que as “esculturas capilares” e as vestimentas eram utilizadas apenas nas “horas de não-trabalho”:
“(...) os maridos de então não queriam que suas esposas aparecessem no filme sem que estivessem devidamente paramentadas, justamente pelo que distinguia aquela comunidade das outras em suas relações com a tradição, o que lhes dava, portanto, dignidade e respeito. Assim, espremidas pelas necessidades da ‘pesquisa’, por um lado, e pelas necessidades matrimoniais e familiares, por outro, as mulheres de Plozevet começaram a cozinhar e a trabalhar como nunca dantes jamais haviam feito”[12]
As “condições presentes” na década de 1960 eram diferentes trinta anos depois. O depoimento da década de 1990, não se limita ao descobrimento de uma “encenação” das mulheres de Plozevet: “as lembranças evocadas e transmitidas por um sujeito estão presas à sua trajetória de vida, o que lhe e transmitidas por um sujeito estão presas à sua trajetória de vida, o que lhe permite oferecer um testemunho das transformações ocorridas ao seu redor e, ao mesmo tempo produzir uma análise das mudanças por ele percebidas”[13]. Através das entrevistas, das memórias individuais das mulheres, é possível obter as do coletivo – matrimoniais e familiares – e os pesquisadores que defendem a utilização dos depoimentos individuais, o fazem por “considerarem que as biografias de indivíduos comuns concentram todas as características do grupo, (...) mostram o que é estrutural e estatisticamente próprio ao grupo e ilustram formas típicas de comportamento.”[14]
Vários são os campos de pesquisa para o uso da história oral [15]:
Cotidiano: envolvendo como “casa, família rotina doméstica, refeições, relação com os pais, lazer, escola e vida profissional”[16]. Na Inglaterra, um programa de história oral foi iniciado, pelo DCGP – The Deliberately Concealed Garments Project (Projeto dos Vestuários Propositalmente Ocultados), para registrar as descobertas dos “caches” (objetos usados escondidos nas paredes, chaminés e outras estruturas, como amuletos de proteção, geralmente encontrados quando da reforma de edificações antigas). O objetivo é aprender mais sobre as circunstâncias da descoberta e do esconderijo, além, de informações sobre o ponto de vista dos descobridores, proprietários, curadores e conservadores.[17]
Política: não somente registros das personalidades em cargos importantes, como por entrevistas que permitam a reconstituição das teias de relações, as variáveis articulações de atores e grupos. Como a entrevista gravada em 2004, com Dona Maria Raimunda Araújo – Mundinha -, pelo CPDOC. Através de seu relato e iniciativa pessoal de criação da Biblioteca Eugênio Araújo, informações sobre o CNN - Centro de Cultura Negra do Maranhão.[18]
Socializações e Trajetórias: grupos pertencentes a diferentes gerações, sexos, profissões, religiões, entre outros.
Comunidades: reconstituição de trajetórias específicas, como de bairros e imigrantes. Como por exemplo, o projeto “Memórias do ABC”, iniciado em 2003, composto pelas histórias de vidas e lembranças de moradores dos municípios de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. A partir dos depoimentos gravados na Universidade IMES é que se procedem a coleta, empréstimo e reprodução de documentos, objetos pessoais dos entrevistados, que serão digitalizados e incorporados ao chamado “HiperMemo” – Bando Hipermídia de História Oral e Memórias do ABC.[19]
Instituições: estudo de empresas privadas e órgãos públicos. O Centro de Memória Bunge, por exemplo, possui “cerca de 700 mil documentos que contam a história da indústria brasileira, da arquitetura, do design, do marketing e da propaganda, além de informações sobre agronegócio e sobre as empresas Bunge”[20], porém em seu website oficial, não há menção de registros orais, depoimentos de ex-funcionários que poderiam enriquecer os registros iconográficos.
Biografias: auxílio na reconstituição de trajetórias de vidas. Atualmente, com a proliferação de websites oficiais de artistas, alguns possuem registros sobre a criação, de determinadas canções, como por exemplo, as encontradas no endereço do cantor-compositor Leoni (www.leoni.art.br), co-autor de “Exagerado”, conhecido na voz de Cazuza, onde há depoimentos orais sobre os processos de composições das músicas “Garotos II”, “Canção para quando você voltar” – relacionada ao acidente aéreo que envolveu O músico Herbert Vianna -.
Experiências: estudo da forma como grupos elaboraram e executaram determinadas experiências (aprendizado e decisões estratégicas), assim como uma “mudança de perspectiva histórica”, através de entrevistas que contradizem as generalizações. O exemplo citado nos parágrafos anteriores, sobre os documentários de Edgar Morin (década de 1960) os realizados por Areila Nathan (década de 1990).
Tradições Culturais: transmissão de informações que geralmente ocorrem de geração para geração, como histórias, provérbios, canções, modos de falar, entre outros. Como os registros de Bens Culturais Intangíveis – Patrimônio Cultural Imaterial.
Memória: estudo das representações do passado, o trabalho de constituição e de formalização da memória, atrelada à construção da identidade, “resultado de um trabalho de organização e de continuidade e de coerência”[21]. Como por exemplo, a obra “O Fio da Memória”, de Eduardo Coutinho.
Apesar das controvérsias sobre o poder de alcance da História Oral, atualmente, “parece ser consenso a sua definição como uma metodologia de pesquisa que produz a sua própria fonte a partir de entrevistas gravadas com pessoas que vivenciaram e vivenciam certos acontecimentos, conjunturas, modos de vida, instituições e outros aspectos da vida contemporânea que costumam não ser contempladas pela documentação escrita”[22]. Porém, mesmo com as transformações no campo da história, “a legitimidade da história oral não é assunto resolvido”[23]. Recuando algumas décadas, entre 1960 e 1970, nos Estados Unidos, ocorreu a expansão e desenvolvimento de vários centros de história oral. Entre os temas de pesquisa, o destaque dos depoimentos sobre, por exemplo, as lutas dos direitos civis, que procurava recuperar as trajetórias das minorias e excluídos, como mulheres, negros, imigrantes. Vista como “uma história oral militante”[24], não foi bem acolhida pela academia - esse engajamento é fortalecido ao final da década de 1970, com a publicação de “Vozes do Passado”, de Paul Thompson, destacando a função da história de “devolver a história do povo, promover a democratização da história em si mesma”[25], expandindo-se através de pesquisas semelhantes na Alemanha, Itália e Inglaterra, nessa última, o envolvimento com a história oral não se restringiu ao espaço acadêmico: alfabetizadores de adultos utilizaram a história oral como um instrumentos para estimular a autoconfiança dos analfabetos e sindicalistas, como meio de registrar a história de suas organizações -. Essa “militância política” ainda hoje, é uma das críticas direcionadas à história oral.[26]
Outra aspecto negativo, relacionado à História Oral e/ou às Fontes Orais, é a problemática da administração acadêmica sobre as fontes produzidas, pois, em sua maioria, elas permanecem com os pesquisadores, tornando-se público apenas o resultado final - artigos, dissertações, teses – e não a totalidade dos depoimentos obtidos e somando-se a isso, o direito de uso/divulgação que envolve entrevistado e entrevistador, representam obstáculos para a consulta dos demais interessados. Sobre a acessibilidade aos registros orais, Portelli, através de seu depoimento, exemplifica as questões que a envolvem:
“um determinado depoimento foi prestado a você e nem sempre o entrevistado está ciente de que sua narrativa poderá se tornar acessível, em algum arquivo, a qualquer pessoa. Quanto a mim, portanto, a condições que imponho (...) é que as fitas fiquem guardadas lá (Acervo de História Oral de Kentucky) e quem quiser poderá ouví-las e ler as transcrições, mas, antes de publicá-las, deverão obter minha permissão. Preciso ter certeza de que as aproveitarão sem violar o meu acordo, meu pacto com o entrevistado.”[27]
No centro Universitário La Salle, a organização do acervo abrange três etapas, com o objetivo de vencer a barreira tempo e espaço, para que pesquisador e/ou interessados em geral, possam acessar as informações que necessitam: “o primeiro relaciona-se com a integridade dos depoimentos – a sua identificação e localização, a conservação e a guarda patrimonial; o segundo é a preocupação com o conteúdo, ou seja, elaborar dados e informações sobre os depoimentos para possíveis buscas por parte de pesquisadores / curiosos; o terceiro é comunicação acervo ao público, o que, em nosso caso, fazemos de forma tradicional (acesso a banco de dados local) e pelo cibersistema (índex que remete ao banco de Dados).”[28]
Ciência, disciplina ou fonte, os depoimentos orais, suas subjetividades e distorções, ampliam as possibilidades de pesquisas e conseqüentemente, possibilitam uma melhor compreensão do objeto de estudo, uma vez que exigem uma abordagem interdisciplinar, que envolve conhecimentos tecnológicos para os registros, conhecimentos na área de psicologia para compreensão das subjetividades dos relatos baseados na memória, entre outros. Sobre o seu acesso, ainda existem muitos pontos para discussão: direitos autorais, catalogação, arquivos, preservação e meios de difusão. Em ambos os casos, amplas possibilidades para diversas áreas do conhecimento.
[1] GOULART, Elias Estevão, PERAZZO, Priscila Ferreira, LEMOS, Vilma. “Memória e cidadania nos acervos de história oral e mídia digital”. Em Questão. Porto Alegre, Jan./Jun. 2005, v.11, n.1, p.156-157.
[2] FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: um inventário das diferenças. IN: ENTRE-VISTAS: abordagens e usos da história oral / Marieta de Moraes Ferreira (coord.); Alzira Alves de Abre... [et al]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1994.
[3] Ibid., p.10.
[4] PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral. IN: Projeto História, Revista do Programa de Estudos de Pós-graduados em História e do Departamento de História – PUC/SP. São Paulo, n.15, Abr. 1997, p.22.
[5] Ibid., p.16.
[6] THOMSON, Alistar. Recompondo a memória: questão sobre a relação entre a História Oral e as memórias. IN: Projeto História, Revista do Programa de Estudos de Pós-graduados em História e do Departamento de História – PUC/SP. São Paulo, n.15, Abr. 1997, p.69.
[7] FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: um inventário das diferenças. IN: ENTRE-VISTAS: abordagens e usos da história oral / Marieta de Moraes Ferreira (coord.); Alzira Alves de Abre... [et al]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1994, p.9.
[8] Ibid., p.9.
[9] PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral. IN: Projeto História, Revista do Programa de Estudos de Pós-graduados em História e do Departamento de História – PUC/SP. São Paulo, n.15, Abr. 1997, p.15.
[10] GOULART, Elias Estevão, PERAZZO, Priscila Ferreira, LEMOS, Vilma. “Memória e cidadania nos acervos de história oral e mídia digital”. Em Questão. Porto Alegre, Jan./Jun. 2005, v.11, n.1, p.156.
[11] MENEZES, Paulo. Representificação: as relações (im)possíveis entre cinema documental e conhecimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, V.18, n.51, Fev. 2003, p.87-89.
[12] Ibid., p.88.
[13] SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. “Fontes Orais: testemunhos, trajetórias de vida e história”. Curitiba, Arquivo Público do Paraná. Disponível em: www.pr.gov.br/arquivopublico/pdf/
palestra_fontes_orais.pdf. Acesso: 24 de Outubro de 2007.
[14] ALBERTI, Verena. “O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa”. IN: ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 23.
[15] Ibid., p.23-27.
[16] Ibid., p. 24.
[17] EASTOP, Dinah. “Material culture in action: conserving garments deliberately concealed within buildings”. Anais do Museu Paulista. São Paulo, Jan./Jun. 2007, v.15, n.1, p.187-204.
[18] HEYMANN, Luciana Quillet. Velhos problemas, novos atores: desafios à preservação dos arquivos privados. Rio de Janeiro: CPDOC, 2005.
[19] GOULART, Elias Estevão, PERAZZO, Priscila Ferreira, LEMOS, Vilma. “Memória e cidadania nos acervos de história oral e mídia digital”. Em Questão. Porto Alegre, Jan./Jun. 2005, v.11, n.1, p. 160-163.
[20] Centro de Memória Bunge. Disponível em: Acessado em 26 de outubro de 2007.
[21] ALBERTI, Verena. “O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa”. IN: ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 27.
[22] PERELMUTTER, Daisy. “História Oral: limites e possibilidades”. São Paulo. Curso Gestão em Bens Culturais – Escola de Economia / FGV-SP. MBA Bens Culturais: Cultura, Economia e Gestão, 2007.
[23] FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: um inventário das diferenças. IN: ENTRE-VISTAS: abordagens e usos da história oral / Marieta de Moraes Ferreira (coord.); Alzira Alves de Abre... [et al]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1994, p.10.
[24] Ibid., p.4.
[25] Ibid., p.5.
[26] Ibid., p.11.
[27] Transcrição do debate com Alessandro Portelli. IN: Projeto História, Revista do Programa de Estudos de Pós-graduados em História e do Departamento de História – PUC/SP. São Paulo, n.15, Abr. 1997, p.36.
[28] GRAEBIN, Cleusa Maria Gomes, PENNA, Rejane. “História, Memória e Instituições: obstáculos e resistências à inserção das fontes orais em arquivos e museus”. Oralidades – Revista de História Oral. NEHO – Núcleo de Estudos em História Oral (USP). São Paulo, Jan./Jun. 2007, n.1 p.100.